viernes, 24 de octubre de 2014

1994 - MUSEU ABERTO DO DESCOBRIMENTO: O Brasil Renasce Onde Nasce - UTOPIA II


 
 
PINHO, Roberto Costa; CHACON, Alex Peirano (orgs.). Museu Aberto do Descobrimento: O Brasil Renasce Onde Nasce. Salvador/São Paulo: Fundação Quadrilátero do Descobrimento/Gráficos Burti, 1994. Págs. 237.


[Textos de Arnaldo Jabor, “Enigma Brasil, Realidade e Esperanca” – “Eu sou a Pátria Amada de Mil Faces”, de Antônio Risério, del propio Roberto Costa Pinho e Caetano Veloso, “UTOPIA II – O Brasil no Limiar do Terceiro Milênio”]



“ …
C.P. - ¿Cómo fue tu aporte al libro Museo Abierto del Descubrimiento, del que Página/12 publicó un texto, hace algunas semanas?

C.V. - Bueno, en realidad eso es raro. Alguien hizo aquí un libro con ese título, un libro de fotos y textos, e incluyó una parte de una conferencia que yo di el año pasado. No escribí eso especialmente para el libro. Escribí esos pensamientos para hablarlos en una charla en el Museo de Arte Moderno de Río. La gente que hizo el libro eligió trozos de la conferencia y los publicó. De ahí saltó a un diario local. Bueno. son cosas que uno no puede controlar, que lo superan.


C.P. - ¿Aquí llamó la atención que para encabezar el texto, que habla de la cultura brasileña utilizaras un texto de Jorge Luis Borges, que puede tener apellido portugués pero que no parece muy cerca de la sensibilidad latinoamericana.

C.V. – Sí, es cierto, pero eso teóricamente. Cuando lo leí en realidad sentí que ese texto valía para los dos países, para países por los que el futuro pasó de largo, y que deben resolver su presente teniendo en cuenta que no son lo que soñaron ser pero tampoco pueden pervivir en el dolor de estar quietos. Brasil, más que nada ¿no? ...”


(En entrevista con Carlos Polimeni en Rio de Janeiro, para el diario Página/12, publicada el 27/11/1994)






 
 
 
 

 









 

 


 
 
 
 
 
 



 
 
 





Folha de S.Paulo




São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994.


Leia texto inédito de Caetano Veloso, que integra o livro "Museu Aberto do Descobrimento", a ser lançado no próximo dia 27, pela Fundação Quadrilátero do Descobrimento



Brasil é braseiro de rosas
A União, estados de amor.
Floral: sub-espinhos daninhos
Espinhal: sub-flor e mais flor. 

Sousândrade [Verso 73, Inferno de Wall Street]

Nosso povo, "diferentemente dos americanos do norte e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. Isso pode-se atribuir ao fato geral de que o Estado é uma inconcebível abstração. O Estado é impessoal: nós só concebemos relações pessoais. Por isso, para nós, roubar dinheiros públicos não é um crime. Somos indivíduos, não cidadãos. Aforismas como o de Hegel –Estado é a realidade da idéia moral– nos parecem piadas sinistras."

Essas palavras que acabo de citar podem parecer referir-se a nós, brasileiros. Na verdade, são palavras de uma argumentação sobre o caráter argentino a que Borges recorreu mais de uma vez em seus impecáveis escritos. Se decidi repeti-las aqui foi porque me interessa ressaltar o risco que todos corremos, todos nós que falamos em nome de países perdedores da História, de tomar as mazelas decorrentes do subdesenvolvimento por quase-virtudes idiossincráticas de nossas nacionalidades. O que nos parece sinistro, isso sim, é o fato de vermos a nossa incapacidade para a cidadania guindada à condição de contrapartida de uma bela vocação individualista, e de aprendermos que nosso desrespeito aos dinheiros públicos nasce de uma quase nobre rejeição dessa inconcebível abstração que é o Estado. No entanto, é uma aproximação desse aspecto difícil do contato com aquele texto que me interessa aqui. Saber em que medida podemos, sem nos iludir, fazer planos para o futuro e sonhar a partir de um aproveitamento de nossa originalidade tomada em sua complexidade desafiadora.

Quero chegar a perguntas de teor semelhantes ao da seguinte: em que medida podemos discriminar o que é, em nós, atraso em relação, por exemplo, às conquistas americanas de direitos dos cidadãos, e o que é vantagem nossa por não termos aquela obsessão, que é uma obcecação, que os americanos têm de considerar passíveis de julgamento público as mais íntimas, nuançadas e sutis ações do âmbito privado. Não sei a resposta para tal tipo de pergunta, mas seguramente não estou satisfeito com as respostas que se tornaram consensuais. Essas perguntas, esse olhar de perto o pequeno trecho do texto de Borges vem por conta da minha ambição de fazer aqui algo tão fora de moda no nosso finzinho de século finzinho também de milênio, algo tão em desuso e desprestígio que temo que seu mero anúncio soe como uma aberração: falar em tom de profecia utópica.

O desejo de esboçar novas utopias deve nascer em mim menos da necessidade de contrastar com esse ambiente desencantado do que da responsabilidade de compensar minha própria participação na criação do sentimento de desencanto. Refiro-me aqui à minha atuação em música popular desde meados da década de 60 e, sobretudo, às atitudes algo escandalosas e algo superestimadas que, no final daquela década, ganharam o apelido de tropicalismo. Esse movimento, no que diz respeito, teve todas as caraterísticas de uma descida aos infernos.
Para entender isto, é necessário considerar o clima da MPB na época, os desenvolvimentos do samba-jazz, o surgimento da canção engajada e, finalmente, a esdrúxula conjugação dos dois, como uma espécie de otimismo superficial e ingênuo se comparado com a densidade da bossa nova. Claro que é a bossa nova que tem fama de otimista; as canções de protesto, com ou sem convenções rítmicas jazzísticas, é que trouxeram as referências explícitas à miséria e à injustiça social e o tom crítico.Do ponto de vista dos que fizeram o tropicalismo, ao contrário, a bossa nova de João Gilberto e Antônio Carlos Jobim significava violência, rebelião, revolução e também olhar em profundidade e largueza, sentir com intensidade e coragem, querer com decisão e tudo isso implica enfrentar os horrores da nossa condição: ninguém compõe "Chega de Saudade", ninguém chega àquela batida de violão sem conhecer não apenas os esplendores mas também as misérias da alma humana.

Dor sem esperança!... Quantas vezes ouvi dizer que o Brasil cansou de ser o país do futuro, ou que o Brasil era o país do futuro mas o futuro já chegou, já passou e o Brasil ficou aqui. O otimismo evidente da bossa nova não é tolo e é por isso que ela nem sequer nos parecia otimista quando estávamos à beira de mergulhar no tropicalismo. O otimismo da bossa nova é o otimismo que parece inocente de tão sábio: nele estão resolvidos provisória, mas satisfatoriamente, todos os males do mundo. De tal otimismo podemos dizer, lembrando Nietzsche mesmo, que é trágico. O cenho cerrado da esquerda festiva parece sério quando é apenas bobo. O tropicalismo sempre quis estar à altura da bossa nova: eu vivo repetindo que o Brasil precisa chegar a merecer a bossa nova. A nossa descida aos infernos se efetuou como estratégia de iniciação ao grande otimismo ainda não superamos a fase sombria iniciada em 1967. De fato, nunca canções disseram tão mal do Brasil quanto as canções tropicalistas, nem antes nem depois. Com exceção das canções posteriomente criadas pelos próprios compositores do movimento ou pelos seus descendentes algo remotos: os melhores roqueiros dos anos 80. É de volta de tais infernos que pretendo trazer visões utópicas.

Certa vez, tive uma conversa fascinante sobre a canção "Tropicália", num castelo medieval em Cesimbra, com Roberto Pinho e um senhor português que era tido como alquimista. O ponto de ligação entre eles era o professor Agostinho da Silva, um intelectual português que foi perseguido por Salazar e veio para o Brasil, onde participou da formação da Universidade da Paraíba, da Universidade de Brasília, e que, durante o período dos grandes projetos culturais da Universidade da Bahia no fim dos anos 50 e início dos 60, organizou e dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador e disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspiração pessoal que atraiu algumas pessoas que me pareciam atraentes. Não foi sem pensar neles que eu incluí a declamação de um poema de "Mensagem", de Fernando Pessoa, no happening que foi a apresentação da canção "É Proibido Proibir" num concurso de música popular na televisão em 1968. Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas nem como estudioso nem como militante. Apenas me parecera interessante que houvesse gente falando no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul, numa época em que todo o mundo falava em mais-valia e nas teses científicas de transformar o mundo através da classe operária.

E, sobretudo, foi por causa disso que eu entrei em contato com o livro "Mensagem", que revelou para mim a grandeza da poesia de Fernando Pessoa. Não me parecia possível que se demonstrasse mais fundo conhecimento do ser da língua portuguesa do que nesses poemas por causa de cada sílaba, cada som, cada sugestão de idéia parece estar ali como uma necessidade da existência mesma da língua portuguesa: como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final. O fato de "Mensagem" ter como tema o muito da volta de dom Sebastião e da grandiosidade de um adiado destino português, enobrecia, a meus olhos, os interesses daquele grupo de pessoas que cultivavam tais mitos.

De modo que, em Cesimbra, comecei a ver "Tropicália" e a pensar o tropicalismo também à luz do sebastianismo, ou melhor, na minha versão do sebastianismo, que consistia em adivinhações do que fosse o sebastianismo deles. Eu, no entanto, sempre fui cético.

Já no meu segundo ano de exílio em Londres, por causa de Glauber Rocha, que então filmava "Cabeças Cortadas", fui a Barcelona e vi a amargura com que o povo da Catalunha sofria sua anexação a Castela e a humilhação de ter sua língua materna esmagada pelo castelhano. Um dia, ouvi de um dos produtores do filme de Glauber a versão da descoberta da América que começava por dar Colombo como catalão de nascimento. Ele o afirmava com a mesma paixão com que ouvi alguns sebastianistas brasileiros e portugueses falarem em provas de que Colombo era português.

Só anos depois é que li um livro de Unamuno em que ele fala de Portugal e da língua portuguesa com muito carinho e muita delicada observação, apontando a sensação de culpa que o pensamento das línguas portuguesa e catalã traz à alma de um escritor espanhol. Mas, naquele momento, em Barcelona, eu senti a identificação de Portugal com Catalunha nas suas criações de fantasias compensatórias. O poema "O Colombo" do Pessoa de "Mensagem", redime esse sentimento e, na sua grandeza, é já uma superação de toda inferioridade ao passo que propõe uma transcendência da mágoa.

No entanto, o português não é o catalão. Não só Portugal não ficou anexado à Espanha como espalhou sua língua pelo mundo. E aqui estamos falando português nesse imenso pedaço do continente sul-americano. Somos muitos milhões. Nunca chegamos a ser um país bom. E grande parte de nossas mazelas vêm do fato de sermos portugueses. Vêm no bojo da maré e baixa da cultura mediterrânea e sul-européia que, por sua vez, é uma marola da grande fuga da onda civilizatória das regiões quentes para as regiões frias: Babilônia, Egito, Grécia e Roma deram lugar a Inglaterras e Alemanhas e Canadás; Roma ainda está inteira em nós a assistir a aclimatação de suas conquistas em territórios bárbaros, onde as idéias de agasalho, presteza e precisão se superdesenvolveram comandadas pela vitalidade de homens determinados, os quais como que transformaram a chama da corrida humana em implacável e penetrante luz fria. O Renascimento, o Ocidente moderno, é fortemente mediterrâneo, Leonardo e Camões, mas seus desenvolvimentos boreais é que nos trouxeram até onde estamos, para o bem e para o mal.

Os Estados Unidos são a última expressão dessa grande movimentação que, ao atingir o Extremo Oriente pelo Japão e tigres asiáticos neocapitalistas, e pela China neocomunista, está, parece, em vias de fazer algum tipo de desvio de rota ou virada de orientação. Não temos como mensurar o quanto devemos a esses minuciosos e limpos pecadores do norte Prometeus do fogo gelado que nos acenam com comunicações rápidas e computadorizadas de informações cada vez mais complexas e mais facilmente manipuláveis. E também com prescrições legais que tenham em conta uma pluralidade de comportamentos nunca antes imaginada numa sociedade humana. Cresci desprezando os entreguistas que adoram servir de lacaios do capital americano: na sua forma arrogante de mostrar submissão vejo a mais abominável expressão de heteronomia.

Mas sinto uma verdadeira identificação com americanos do tipo de Gertrude Stein, Walt Whitman, John Cage (e também, em larga medida, os artistas plásticos pop dos anos 60), que apostam numa afirmação da América, enquanto que muitos dos nossos amigos americanos "liberais" de esquerda me causam, não raro, um certo dissabor quando fazem uma mistura de mistificação da Europa com mistificação do Terceiro Mundo para negar o que há de perigosamente sugestivo na experiência americana.

Quando Camile Paglia diz que detesta a opinião pseudo-esquerdista dos meios universitários americanos de que a "Grande, Má e Feia América é uma sociedade corrupta, vazia e gananciosa que toda gente maravilhosa e benévola do resto do mundo olha com nojo", não posso deixar de concordar com ela. Amo os Estados Unidos. Apenas não exijo do Brasil menos do que levar mais longe muito do que se deu ali e, mais importante ainda, mudar de rumo muitas das linhas evolutivas que levaram até espantosas conquistas tecnológicas, estéticas, comportamentais e legais.


Interessa-me o
que o Brasil 
diria ao mundo 
se pudesse 
se fortalecer

Sei que, por um lado, o Japão fez e faz isso em escala considerável, principalmente no que diz respeito ao aspecto tecnológico, mas não só, e, por outro, que o Brasil não parece encontrar sequer os meios de esforçar-se para se tornar capaz de fazê-lo.

Mas há algo nos Estados Unidos que não encontramos no Japão: a América, o translado, a terra nova e os grandes espaços; a implantação de uma idéia em terreno tornado virgem pela incapacidade mesmo de considerar as culturas indígenas; a imigração variada européia e asiática, que trouxe mais nuances e diferentes problemas ao panorama social já na base violentamente problematizado pela vinda forçada dos negros; um ar de liberdade de movimentos que nenhum lugar de cultura autóctone sedimentada pode de fato conhecer e isso o Brasil tem em comum com os Estados Unidos e com todos os países americanos.

Talvez o Brasil nos induza a esperar dele experiências mais extremas. E aqui é o momento de correr o risco de considerar vantajosas até mesmo as condições adversas com que a história nos presenteou. Fazer, por exemplo, do fato de não termos sido eficientes o suficiente no extermínio dos índios como os nossos irmãos do norte, e mesmo do fato de vermos que ainda estamos efetuando, com atraso, esse extermínio, um oportunidade de nos tornarmos índios ao passo que nos reconhecemos ultra-ocidentais.

E aqui quero citar um daqueles filósofos franceses que começam ameaçando o senso comum mas nada dizem que possa valer por um desmentido do consenso, mas que parece ser mesmo um grande sujeito: Gilles Deleuze, que, naquele hilariante livro candidamente chamado "O que é a Filosofia?", numa inacreditavelmente convincente jogada retórica, diz do filósofo que ele "deve tornar-se índio para que o índio não sofra a miséria de ser índio". Mas só ganha o direito de arriscar tais inversões que se sabe engajado num sonho grande e luminoso. Só na perspectiva do país artista superior que nós temos o dever de perceber que a história sugere que sejamos é que podemos revalorar aspectos de nosso atraso como sinais de que casualmente escapamos de uma servidão maior do misterioso desvelar do nosso destino.

Uma das vantagens da nossa abominável situação é podermos pensar que tudo ainda está por fazer. Dito assim, isto parece um lugar-comum estéril. E, pior, pode trazer a seguinte pergunta como complemento: e se justamente o Brasil tivesse sido uma grande oportunidade que se perdeu irremediavelmente, deixando-nos apenas com a degradação social que é demasiadamente complexa para servir de papel em branco ou ponto de partida, ou seja, se estivermos diante da mera entropia e não do caos inicial de onde se pode extrair uma ordem bela?

O fato é que tanto nas minhas canções tropicalistas como nas de agora o que eu vejo é a tensão entre esses dois últimos termos. Entropia/caos. Mas eu, eu mesmo, não o mero escravo das canções, penso os aspectos entrópicos como problemas a superar deveres severos: temos que começar por ler com singeleza os sinais de trânsito nas cidades. Por outro lado, amo o caos; não apenas como caldo rico de onde se destilará a nova ordem bonita, mas como desordem atual.

O adjetivo "bonita", escolhido para qualificar a futura ordem desejada, me parece revelar que o colorido do caos o desequilíbrio onde viceja a violência e a perversão e também o talento excepcional e a inventividade, os caprichos e os relaxos, as vanguardas estéticas e os exotismos sexuais, o colorido desse caos, dizia, é absolutamente indispensável à composição da nação sonhada. Eu o estamparia nas vestes do povo desse país do futuro.

Ninguém disse melhor a natureza do nó que estamos a atentar desatar do que Antônio Cícero um intelectual de formação filosófica acadêmica que trabalha também com música popular nestas palavras que reli, citadas por Carlos Diegues, num belo artigo sobre o futuro do Brasil: "Podemos dizer que o paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de oferecer a prefiguração da solução de alguns problemas que poucos países o conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente."

Tudo o que eu disse e tudo o que estou por dizer aqui, está contido nessa formula de Cícero; e não creio que eu possa dizer melhor: apenas dou testemunho de como em mim esse modo de encarar o Brasil se desenvolveu com o colorido próprio das minhas idiossincrasias e das minhas limitações.

Todo o povo frustrado pode fazer fantasias compensatórias. Mas o que pensar quando estamos na situação de criar tais fantasias e temos como matéria real um país novo, imenso, tropical, mestiço e de fala portuguesa, quer dizer, usando uma das línguas do Sul da Europa que mais tem sofrido humilhações históricas depois de ser a que mais se espalhou pelo mundo, a língua em que se escreveu o épico inaugural da dominação européia sobre o globo, o grande épico da expansão ocidental? E, no entanto, frequentemente somos catalogados como não fazendo parte do "Ocidente".

Devemos pensar assim: o mundo em que vivemos parece-nos mais com o mundo da história remota da humanidade, quando violentos avanços tecnológicos foram feitos, do que com a Grécia e Roma. Estas entregaram-se ao cultivo das artes, das leis e das idéias, num ambiente tecnologicamente estável, amparado na mão-de-obra escrava. O curioso é que qualquer desvio extra-ocidental do curso da história atual –mesmo que seja a temida e pouco falada liderança da China sobre os não-ocidentais numa ação contra os atuais países ricos (eventualidade que já ouvi referida em tom alarmista na boca de conservadores americanos e em tom auspicioso na boca de sebastianistas portugueses) –poderá levar a uma retomada da ênfase greco-romana nas virtudes pessoais e sociais, em detrimento do furor tecnológico.

Ou seja, pode levar o Ocidente de volta ao Ocidente. Um amigo meu, um dos mais significativos representantes da contracultura nos anos 60, que sempre me impressionou pela inteligência ao mesmo tempo livre e realista, enlouqueceu. Antes de sua loucura tornar-se fato consumado, ele me confidenciou que tinha chegado ao limite de sua capacidade de pensar, em busca de uma alternativa para a cultura ocidental, e não conseguia sair dela: suas respostas e soluções eram intransponíveis. No entanto, muito de sua energia tinha sido gasta no esforço de ir além não apenas da injustiça social, da mediocridade e do subdesenvolvimento, mas também do estágio em que encontrara a religião, o sexo e a própria concepção do lugar do homem na natureza.

Sendo paulista, o fato de ser brasileiro era para ele um acaso de muita pouca importância para que fosse sequer considerado infeliz: a perspectiva brasileira e a língua portuguesa eram para ele uma ferramenta neutra. É assim que eu quero pensar. Mas, desde o início, sempre considerei meus desejos de mudar o mundo como sinal de um movimento interno da história do Brasil, e cada pensamento ambicioso meu, um esboço de aventura da própria língua portuguesa.

Eu sei que os cultores de mitos medievais que sirvam de inspiração para extremados nacionalismos modernos são a semente das regressões totalitaristas: um professor português de literatura me disse, um dia, a respeito de Agostinho da Silva, que a princípio temeu que suas idéias se identificassem com o salazarismo. Às vezes, algumas afirmações instigantes de Ariano Suassuna sobre o Brasil a mim me soam aparentadas com a famosa frase de Salazar –"prefiro ver Portugal pobre do que Portugal diferente".

Ao contrário, penso que o Brasil deve tornar-se o mais diferente de si mesmo que lhe for possível, para encontrar-se. E também saber livrar-se da pobreza que desumaniza sua população. Devemos aprender a observar as formalidades relativas aos direitos humanos e tornarmo-nos destros para a tecnologia. Devemos estar à vontade na versão de Ocidente que nos veio do norte. E superá-la. Não se trata de uma adaptação ao que é ocidental, como se espera de países asiáticos e africanos. Somos ocidentais. Mas Ocidente sempre significou transcendência da particularidade cultural, ambição de tomar nas rédeas a história da espécie.

Assim, amar a língua portuguesa é amar sua capacidade como instrumento universal; falar português é livrar-se da prisão do português. Outro dia, um economista americano esteve no rio –um que fazia propaganda do livre mercado como salvador das vítimas do estado, e aconselhava a que abríssemos nossa rede de vôos domésticos às empresas aéreas americanas –esse economista (aliás, um americano negro) esteve aqui e disse que se orgulhava de só falar inglês e não querer aprender nada de outras línguas pois o inglês é a língua do futuro, ao ler essa declarações, pensei imediatamente: não é assim que eu amo a língua portuguesa. A língua em que Fernando Pessoa escreveu: O Ocidente, futuro do passado... Para nós, não deve se tratar de uma adaptação ao que hoje se chama Ocidente, mas de uma sua retomada radical que implique uma sua superação. Neste estágio a minha loucura.

Naturalmente, tenho capacidade para a sensatez: mesmo sem estudar a Constituição de 88, concluo que há conquistas ali que devem ser defendias, com unhas e dentes, contra qualquer ameaça –o exemplo indiscutível que me ocorre é a independência que foi dada ao Ministério Público. Mas não me sinto inclinado a participar do horror ao capital estrangeiro ou da defesa das estatais. Desde antes do tropicalismo, interessa-me saber o que o Brasil diria ao mundo se ele pudesse se fortalecer, o modelo econômico para chegar a esse fortalecimento sendo de importância secundária.

No entanto, a escandalosa insensatez também me guia. O já citado Agostinho da Silva costuma dizer que Portugal já civilizou Ásia, África e América –falta civilizar Europa. Tal inversão petulante encontra eco dentro de mim. Descartado o risco de ser a expressão do ressentimento contra a luminosidade boreal vitoriosa, por parte de obscuros perdedores da história, essa exortação se identifica com minha idéia de radicalização do Ocidente implicando sua superação. Nessa perspectiva, o Brasil não precisa provar que tem caráter e é uma promessa de originalidade. Nem a má imagem que dele fazem hoje os brasileiros nem a emigração para países mais ricos podem apagar a força do que somos nem o sentido que tem o modo como o acaso nos tem tratado.

A Irlanda, do meio do século 19 ao início do século 20, esmagada sob a opressão inglesa, perdeu, por emigração, metade de sua população. As coisas lá nunca se acertaram; a ira santa contra a Inglaterra levou os irlandeses até a prática de um terrorismo que não se pode chamar de "esquerda". Ninguém, no entanto, ao pronunciar o nome da Irlanda, pensa um mero e pedestre fracasso. E não se pensa só em Joyce, Wilde, U2, Sinead O'Connor, Yeats ou Neil Jordan, que marcaram o mundo usando a língua do opressor –pensa-se no fogo irlandês, a teimosia, nos cabelos de Maureen O'Hara e no álcool. A Irlanda pode nunca superar suas chagas, mas é algo cuja grandeza reconhecemos.

Mas o Brasil, que não é apêndice da língua inglesa, é algo cuja grandeza em potência se opõe na condição de país novo, americano, com o mito da tábula rasa e o mito da democracia racial. Mas "o mito é o nada que é tudo". A insensatez, assim, me leva a dizer que, pelo Brasil, o gosto da civilização ocidental inicia Grécia, Roma e o gosto mediterrâneo e florestal Israel (grandemente Israel, que nunca foi potência econômica ou militar para dar ao mundo o arsenal de idéias e estilos que deu), mas também o Islã e Jesus (filhos de Israel), e Olodumarê, Dionísio, Ulrá– podem e devem tomar nas mãos as rédeas do mundo, fazendo-o transcender o estágio nórdico e sua ênfase bárbara na tecnologia.






 

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VELOSO, Caetano. O Mundo Não é Chato. Org. Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das letras, 2005. 

 



VELOSO, Caetano. El mundo no es chato – Antología textual. Org. Eucanaã Ferraz. Marea Editorial, Buenos Aires, 2015. 344 págs.




“Diferentemente dos americanos do norte” (1994) 


Jornal do Brasil, 4/11/2005
...
- Mas há um texto originado de uma conferência no MAM* (Museu de Arte Moderna), que é uma tentativa clara de elaboração teórica sobre o país.

- Escrevi aquilo para nunca ser lido, mas para falar na hora uma série de coisas que, ao serem ouvidas, pudessem ficar na cabeça das pessoas. Sou um artista popular. Entendo que, de fato, há também um gosto intelectual desde garoto. Meus artigos com 18, 20 anos, são muito reflexivos, apresentam certa densidade e uma ambição natural de querer pensar, embora sem me preparar e ter muitos instrumentos à mão. Sou temerário quanto a me dispor a elaborar pensamentos sem estar tão bem municiado, embora leia, mas muito desorganizadamente, ao sabor do acaso. ..." (Jornal do Brasil, 4/11/2005)


* Outubro de 1993






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