sábado, 20 de febrero de 2016

1970 - RALPH MACE - Londres




"Viver em Londres e testemunhar a explosão da indústria musical, os grandes grupos de rock e a ascensão do reggae, com seu senso de liberdade para todos, teve considerável influência sobre eles, mas não mudou sua música". 
[Ralph Mace] 


Ralph Mace


Paris, 1971 - Gilberto Gil             Foto: Alécio de Andrade






 





1971
Revista inTerValo
Ano IX – n° 436









 
 




 

 

 





                                                                                  © Foto de Antonio Guerreiro 
1971, Áureo de Souza, Maurice Hughes, Jards Macalé, Caetano Veloso







1971
Revista Sétimo Céu
Outubro - n° 187











2/11/1971 - Show Transa 
Queen Elizabeth Hall





"Ele achava [Ralph Mace] que naquele momento estava começando uma espécie de sucesso, como ele previa para mim. Mas preferi voltar ao Brasil. Ele ficou de mal. O disco foi lançado no Brasil pela Philips. Nunca em Londres".

(Caetano Veloso, 19/5/2012, Folha de S. Paulo)





09/04/09
Caetano conta que esnobou parceria com David Bowie nos anos 70
Ricardo Calazans


21/8/2008 -  Zii e Zie - Estúdio
 
RIO - O diálogo - praticamente uma entrevista - que Caetano travou com Pedro Sá no blog "Obra em progresso" (*) começa com o baiano relatando um encontro com músicos de Salvador, a quem apresentou seu novo disco.

- Mostrando "Zii e Zie" a André T. (o músico André Tiganá), em Salvador... ele estava conversando conosco muito relaxado, rindo etc. Quando botei o disco ele ficou sério e calado ouvindo. Permaneceu sério quando acabou de ouvir. Perguntei se não tinha gostado. Ele disse logo que esse disco era melhor do que o "Cê". Eu ri e perguntei se isso era bom ou ruim. Ele disse: "o 'Cê' eu só ouvi até a metade".

Desta audição participaram outros dois militantes da cena roqueira de Salvador, Glauber Guimarães (Dead Billies, Teclas Pretas) e Fabio Cascadura (Cascadura).

- 'Tava' o Glauber Guimarães, o Fábio Cascadura, estava também o baterista do Cascadura, era uma turma assim. Numa coisa eles concordavam: achavam que esse disco tem muito mais unidade do que o "Cê". Mas eu vejo que o "Zii e zie" tem mais densidade no som da banda mas não tem a mesma unidade do "Cê" - diz Caetano.

Em seguida, os dois enveredam num longo papo sobre música, boa parte dele dedicado ao rock. Caetano revelou a Pedro Sá que esnobou uma parceria com David Bowie no início dos anos 70.

- Ralph Mace (produtor do disco de Caetano no exílio londrino, em 1970, e músico de Bowie) me levou para assistir ao show dele na Round House, dizendo que eu ia me identificar muito com Bowie e ele ressaltava que eu adoraria Angela (mulher de Bowie na época) e que ela me adoraria também. Eu nem cheguei a conhecê-la pois eu não gostei do show de David Bowie e, embora fosse apresentado a ele por Mace no camarim, disse a Mace que não tinha vontade de trabalhar com aquele cara - contou.

Caetano elogiou Iggy Pop ("ele velho no palco fazendo aquelas coisas resultava melhor do que Mick Jagger nesse filme novo sobre os Rolling Stones", comparou os Stooges, grupo proto-punk que Iggy formou no fim dos anos 60, a Jorge Ben, relacionou Pixies a João Gilberto ("E essa redução ao mínimo do 'Cê' eu atribuo muito àquele disco do Pixies ('The BBBC Sessions')", citou Velvet Underground e Lou Reed, Bowie ("Eu acho que o melhor trabalho de David Bowie foi produzir o Lou Reed"), Nirvana, The Police, Sex Pistols, The Clash... E definiu seu lugar como compositor no universo pop sempre em expansão:

- Eu não sou como João Gilberto, nem como Jorge Ben nem como Iggy Pop. Eu sou quase um comentarista. Poderia nem estar fazendo música. Nada é necessário em mim. É tudo meio contigente, meio diletante. Tem gente que não gosta de mim e não sabe por que. Eu poderia explicar a essas pessoas que elas têm toda razão em não gostar se elas têm necessidade de algo assim. Eu mesmo não gosto muito. Eu gosto quando eu vejo um artista como Tim Maia: a pessoa tem que ser aquilo.


(*) Blog "Obra em Progresso" 4/6/2008 - 14/4/2009





 


São Paulo, sábado, 19 de maio de 2012.


Produtor britânico queria unir Caetano a David Bowie


RODRIGO RUSSO
DE LONDRES


Caetano durante seu exílio em Londres, em 1970


Ralph Mace, o produtor de "Transa" e de outros dois discos do período em que Caetano Veloso e Gilberto Gil viveram em Londres, afirma que "ainda parece que esses trabalhos de 40 anos atrás aconteceram ontem e têm sonoridade de hoje".

Com mais de 80 anos, aposentado e vivendo em Vancouver, no Canadá, Mace descreveu, em entrevista à Folha, detalhes do período em que conheceu os artistas e de sua relação musical com eles.

"Viver em Londres e testemunhar a explosão da indústria musical, os grandes grupos de rock e a ascensão do reggae, com seu senso de liberdade para todos, teve considerável influência sobre eles, mas não mudou sua música", analisa Mace.

O produtor, que gravou os teclados do prestigioso álbum "The Man Who Sold the World" (1970), de David Bowie, conheceu os brasileiros em 1969, quando tinha 39 anos e trabalhava como coordenador internacional da divisão pop da Philips -a gravadora dos artistas no Brasil.

Depois de conhecer o empresário Guilherme Araújo, Mace pediu para conhecer e ouvir os artistas. Recebido na casa em que moravam, na região de Chelsea, faltava o ingrediente principal.

"Disse a Araújo que, se Caetano e Gil não fossem tocar, era hora de eu ir para casa. Magicamente um violão apareceu e, por duas horas, primeiro Gil e depois Caetano tocaram e cantaram. Fui conquistado", conta o produtor.

Apesar disso, a Philips britânica não mostrou interesse pelos artistas. A chance veio no selo Famous, dirigido por Leslie Gould, onde Mace também foi trabalhar.

"Transa" é o segundo disco de Caetano produzido em Londres. Mace diz que não teve qualquer interferência na escolha do repertório ou dos arranjos dos artistas.

O produtor explica que se focava em questões técnicas e em "obter dos artistas performances melhores do que as que são alcançadas em apresentações ao vivo, repetindo gravações até que esse padrão fosse alcançado". Para Mace, "Transa" é o álbum de Caetano que tem a melhor sonoridade.

Mace conta ainda que apresentou Caetano a David Bowie em um show em Londres, no início de 1970.

Ele imaginava que os artistas se achariam interessantes e queria levar a Bowie a proposta de reescrever em inglês algumas letras de Caetano, mas logo percebeu que cada um estava muito envolvido em sua própria jornada para aceitar tal cooperação. "Não havia química", resumiu.



2012
Jornal Zero Hora
Caetano Veloso fala sobre "Transa"
O disco foi lançado há 40 anos
Por: Marcelo Perrone
24/6/2012



Foto: Universal / Divulgação


Recolhido para o processo de composição de seu próximo disco, Caetano Veloso topou conversar com Zero Hora sobre os 40 anos de Transa, disco que o tempo consolidou como obra-prima. Na entrevista, ele fala sobre a relação afetiva com o álbum, os bastidores das gravações na efervescente Londres — onde viveu como exilado por dois anos e meio, entre 1969 e 1972 —, a colaboração de Jards Macalé, a influência dos Beatles e dos Rolling Stones e seu encontro com o “cafona” David Bowie.

Zero Hora — Você já disse que considera Transa um de seus melhores discos. Como foi sua relação com o álbum no correr dos anos?
Caetano Veloso
— Eu gostei dele quando o fiz. Mas o achei mais satisfatório com o passar do tempo. Mas o fato é que não ouço meus discos quase nunca. Então, não sei direito.
ZH — Você tem carinho especial por alguma canção do disco?
Caetano
— Adorava Triste Bahia e Mora na Filosofia, mas acho que é porque eram as duas cantadas só em português. Outro dia, vendo o filme Coração Vagabundo, de Fernando Gronstein Andrade, ouvi um som genial e moderno. Fiquei me perguntando: que banda incrível é essa? Depois de um tempo, reconheci: era Neolithic Man.
ZH — A opção de misturar inglês e português nos discos gravados em Londres pode ser interpretada como a necessidade de um exilado ser cidadão de dois mundos?
Caetano
— Pode. Mas não necessariamente. Eu me sentia um cidadão do Brasil. Não me imaginava vivendo e trabalhando na Inglaterra.
ZH — Em relação a seu disco anterior gravado em Londres, Transa representa uma evolução em experimentação. Como foi o processo de elaboração de Transa num intervalo curto entre um disco e outro?
Caetano
— Em primeiro lugar, nesse segundo ano na Inglaterra, já começava a gostar de lá, e a depressão pelo exílio ia me deixando. Depois, chamei Macalé, Tutty, Áureo e Moacyr. Com essa banda, dava para testar ideias, experimentar tipos livres de arranjos. No primeiro disco, eu tinha ficado passivo, seguindo as orientações dos produtores (Lou Reizner e Ralph Mace), mesmo que essas orientações fossem no sentido de ser mais eu mesmo. Por exemplo: só então gravei tocando eu mesmo o violão. Mas, com Transa, começamos desde os ensaios no Arts Lab. Gravamos o disco em quatro sessões. Foi quase ao vivo no estúdio. E as citações de canções brasileiras mais antigas me consolavam da falta que sentia do Brasil.
ZH — Apesar de você assinar sozinho a maioria das faixas, percebe-se que os músicos da banda contribuem com solos e texturas rítmicas e melódicas. Como se deu o processo de composição?
Caetano
— As composições eram minhas. Eu as levava de casa para o estúdio de ensaio com as ideias de intercalação de trechos de outras canções já desenvolvidas. Também as ideias de arranjo eram basicamente minhas. Mas é claro que a qualidade e a inspiração dos músicos que tocavam comigo definiram o som a que chegamos. E Macalé tinha a responsabilidade de orientar o jeito da banda pôr em prática essas minhas ideias.
ZH — Qual foi a importância de Jards Macalé em Transa?
Caetano
— Macalé tinha intimidade comigo havia anos. Assim, eu me sentia desinibido para me comunicar. Além disso, ele tem um estilo muito pessoal de tocar violão, e eu já o convidei (e tive ideias para arranjos) pensando nisso. Pedi que ele dirigisse nossa banda, e tudo fluiu com muita naturalidade.
ZH — Em Triste Bahia, você retoma um poema de Gregório de Mattos, aproximando percepções sobre a terra natal — críticas, mas também líricas e saudosas —, separadas por séculos e unidas pelo trauma comum do exílio forçado. Como foi a composição desta canção?
Caetano
— Esse poema me impressionava muito. Gozado é que, na edição das obras dele que eu tinha, um verso estava transcrito errado. Em vez de “rica te vi eu já”, tinha “Rica te vejo eu já”, repetindo o verbo no presente. Gravei com esse erro (que, sem saber que era erro de impressão, me pareceu até rico poeticamente). Me lembro de ter pensado em fazer uma base à moda dos cantos de capoeira – e de sugerir que Tutty tocasse o berimbau em três afinações diferentes, superpondo-os para formar um acorde na abertura. O jeito de tocar ia sendo burilado nos ensaios. A ordem das citações era fixa. Fiquei muito feliz com o resultado quando a peça foi ficando pronta. A aceleração do andamento aconteceu espontaneamente, e a gente a adotou e frisou. Tudo ficou bonito.
ZH — Nine Out of Ten faz referência aos primeiros acordes do reggae ouvidos fora da Jamaica, em Portobello Road, que você incorporou ao disco de forma pioneira. Como foi esse contato com o reggae?
Caetano
— Eu me apaixonei pelo reggae, junto com Péricles Cavalcanti, que gostava de passear comigo por Portobello. Nem sabíamos ainda o nome do novo ritmo. Quando aprendemos, passamos a repeti-lo em conversas com muita excitação. Quando compus a música (a que, para mim, tem a melhor das letras em inglês que escrevi), pedi a Moacyr Albuquerque, o baixista, que tentasse reproduzir a linha de baixo dos reggaes que ouvíamos. E ele foi perfeito nessa pioneira entrada do reggae na música brasileira. Ouvir a música dos jamaicanos naquela rua me fazia gostar de viver, ajudava a superar a saudade do Brasil. Compor e cantar era conseguir resistir.
ZH — It’s a Long Way cita os Beatles. Que importância eles tiveram em sua trajetória?
Caetano — Os Beatles tinham sido essenciais no nascedouro do tropicalismo. O Gil me chamou a atenção para a inventividade do grupo em 1966. Um ano antes, Marília Medalha tinha observado que Eleanor Rigby era uma canção linda. Mas o grupo de Liverpool ainda não era aceito nos meios sérios da MPB. Eu os adorava. Quando chegamos a Londres, Abbey Road estava para ser lançado, e o grupo se desfazia. Os Rolling Stones estavam na crista da onda, com um rock mais rock e sem riscos de desaparecer. Eu adorava Beggar’s Banquet. E, claro, Satisfaction tinha sido hit no Brasil antes de sairmos. Mas só vim a adorá-los quando os vi no palco. Nossos preferidos, antes de irmos para Londres, eram os Beatles, Jimi Hendrix, Janis Joplin e The Mothers of Invention. Também James Brown e figuras do blues, como John Lee Hooker. Mas já conhecíamos Pink Floyd e The Who. Lá, conhecemos Led Zeppelin, T-Rex (que eu adorava), Faces, Bowie (que eu não gostei quando vi). Eu adorava uma banda chamada Incredible String Band. Fui reouvir outro dia e fiquei encantado.
ZH — No começo dos anos 1970, Londres vivia a ressaca da efervescência hippie, da psicodelia, do fim dos Beatles. O que o levou a escolher essa cidade e qual foram suas impressões ao chegar lá?
Caetano
— Saímos daqui enxotados. A Polícia Federal me pôs no assento do avião. Fomos para Lisboa, onde encontramos nosso empresário, Guilherme Araújo, que tinha ficado lá desde que, tendo ido para preparar a apresentação de Gil no festival Midem, soube de nossa prisão e distribuiu um panfleto de protesto contra a ação das forças de repressão brasileiras. Ele ficou uns 10 dias conosco em Portugal, mas sabíamos que lá não íamos ficar: o país ainda estava sob a ditadura salazarista, embora Salazar já tivesse morrido. De lá, fomos para Paris, onde ficamos um tempo. Guilherme achava que devíamos ir para Londres, por ser mais pacífica e por ter uma cena musical rica. Paris, que não tinha um pop moderno forte, estava na ressaca do maio de 68: a polícia pedia seus documentos a cada esquina. Londres era a escolha mais sensata. Mas eu apenas me resignei. Gostei do clima sem medo e da grama verde. Mas estava muito triste por dentro. Não tinha projetos nem desejos. Aí Ralph Mace apareceu propondo que gravássemos discos.
ZH — Como foi a reação do público inglês nas apresentações de Transa em Londres?
Caetano — Fizemos um show do Transa no Queen Elisabeth Hall impecável. Os amigos ingleses que fizemos ficaram bem impressionados, e os curiosos, que foram para ver o que era, ficaram surpresos. Havia nossos amigos brasileiros e alguns outros que pintaram para ver (não havia esse grande número de brasileiros que há hoje lá). Ralph Mace ficou muito animado, achando que uma carreira minha lá se iniciava. Mas, logo que eu soube que podia voltar para o Brasil, nem pensei duas vezes. Não me arrependo.
ZH — Existe a possibilidade de um show com a íntegra de Transa?
Caetano
— Não creio. Estou ensaiando canções novas para gravar novo álbum. Quando fizer um show, canções de Transa vão estar presentes.
ZH — O clima de Transa sugere um ambiente de extrema criatividade e experimentação. Vocês tiveram contato com drogas lisérgicas que, naquela época, eram comum no universo da música pop?
Caetano
— Tomei ayahuasca em São Paulo, em 1968. Tive uma viagem de visões bonitas, mas, depois de umas horas, fiquei angustiado. Pensei que estava louco para sempre. Nunca mais tomei nada desse tipo. Fumei maconha em 1967, mas tampouco fiquei feliz com a experiência. Era como se estivesse bem de saúde e tivesse, de repente, ficado com uma febre que fazia o coração bater e a cabeça ficar à beira do delírio. A sensação de que não media a duração do tempo era opressiva. Desisti. Bebia, mas nunca fiz disso um hábito. Parei de beber porque a ressaca é cada vez pior, e simplesmente não vale a pena. Sou perfeitamente careta no que diz respeito a drogas.
ZH — É verdade que o produtor Ralph Mace quis promover um encontro de você com David Bowie?
Caetano
— Mace promoveu um encontro entre mim e Bowie. Fomos junto à Round House vê-lo no palco. Mas não gostei. No final, Mace me apresentou a ele. Apenas nos cumprimentamos cordialmente. Mace achava que eu poderia colaborar com Bowie em composições e ideias. Queria que eu fosse passar um tempo na casa dele, disse que eu adoraria Angela, a mulher de Bowie então. Dizem que é pra ela que Jagger fez Angie. Depois que ela e Bowie se separaram, Angela foi a um programa de TV nos EUA e contou que encontrou Jagger e Bowie na cama. Não pensei “escapei de uma boa”. Achei graça. Mas nunca fui fã do estilo de Bowie. Gosto dele como figura histórica, acho que é bom ator (Jagger, no cinema, é péssimo), e as gravações do período em que Brian Eno tocava com ele são bonitas. Mas sempre há algo cafona, falsamente chique naquele lance dele. Mas respeito. Ele produziu Walk on the Wild Side para Lou Reed, não foi?









24/7/2012
A transa entre nós e Caetano

O AI-5, o exílio europeu e as saudades de casa foram alguns dos ingredientes que culminaram na concepção do álbum Transa, um dos mais densos de Caetano Veloso e que completa 40 anos em 2012
Por Pedro Alexandre Sanches



“Meu coração está cheio de um ódio opaco”, disse Caetano Veloso em novembro de 1969. A afirmação partiu da Inglaterra, furou o Oceano Atlântico e veio implodir aqui no Brasil por intermédio do jornal contracultural O Pasquim, que à época publicava textos enviados do exílio londrino pelo compositor baiano.

Por mais que seja possível supor os motivos do ódio opaco de Caetano, o texto não os explicitava. Nem por isso seu final era menos eloquente: “O Rei esteve ontem aqui em casa e eu chorei muito. Se você quiser saber quem eu sou eu posso lhe dizer: entre no meu carro, na estrada de Santos você vai me conhecer. Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer ‘aquele abraço’ a quem quer que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós.”

Elipses, omissões e segredos fizeram a história do Brasil sob a ditadura cívico-militar como fizeram (e fazem) a história musical, artística, cultural intelectual de Caetano Veloso, uma de suas mais complexas traduções. Com o correr dos anos, fomos aprendendo pedaços, a maioria deles fornecida pelas vontades do próprio artista. Só em 1992, por exemplo, soubemos que a balada “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos” (1971) foi composta por Roberto e Erasmo Carlos em dedicatória oculta a Caetano, por consequência da visita mencionada de raspão no texto d’O Pasquim.

“Um dia a areia branca seus pés irão tocar/ e vai molhar seus cabelos a água azul do mar/ janelas e portas vão se abrir pra ver você chegar/ e ao se sentir em casa sorrindo vai chorar.” Roberto cantava com maciez, e ninguém supunha que havia um protesto contra o regime escondido por trás dos versos supostamente amorosos daquele cantor tido como despolitizado, no mínimo, e francamente reacionário, no máximo.

O AI-5, o exílio europeu, as saudades de casa, a visita de Roberto e duas voltas episódicas ao Brasil antes do término definitivo do desterro (no início de 1972) foram alguns dos ingredientes que culminaram na concepção e no lançamento do álbum Transa. O aniversário de 40 anos de um dos mais densos álbuns de Caetano é festejado neste 2012 com truques habituais (edição remasterizada no estúdio inglês de Abbey Road) e outros menos habituais (reedição simultânea em vinil, no formato original, concretista, de “discobjeto” que se desdobra, redobra e transforma em uma espécie de pirâmide).

A perenidade de Transa demonstra que Caetano errava redondamente o alvo quando, naquele velho Pasquim, evocava o diagnóstico opaco sobre o triunfo de inimigos não revelados em aniquilá-lo.

Em 1969, seguindo a praxe de encaixar Gil dentro de seu pacote argumentativo, ele enviava àqueles aos quais não declinava o nome um gilbertiano “aquele abraço”, “não muito merecido, porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar”. Não é possível mensurar quanto havia, no sentimento do artista expulso do país natal, de mágoa, rancor, drama, exagero, quem sabe uma dose de autovitimização. Mas eles (eles quem? Caetano e Gil? Ou outros) não estavam mortos. Viriam outros, que não propriamente os renderiam (afinal, eles estão aí até hoje, hegemônicos, mi nisteriais), mas viriam. “Ele” (quem? Roberto Carlos?) também está vivo, mais ou menos tanto quanto Gil, Caetano, Tom Zé e demais tropicalistas.

Ainda que se sentisse aniquilado em 1969, o exilado acumulava forças para um retorno triunfal – que se materializaria em Transa e, mais tarde, na evocação constante (e ainda autovitimizada) dos três anos de exílio entre 1969 e 1972.
Nesse intervalo, Caetano se comunicou com o Brasil aos soluços. Após a diáspora tropicalista, mandou da Inglaterra um LP bilíngue, Caetano Veloso (1971), que de futura obra-prima (mais ou menos) popular continha apenas a depressiva “London, London”. Sua irmã mais nova, Maria Bethânia, conseguiu para ele uma permissão para visitar a Bahia em janeiro de 1971, sob o pretexto de participar da festa de 40 anos de casamento dos pais.

Segundo ele mesmo narra no livro memorial Verdade Tropical (1997), Caetano foi preso assim que desembarcou no Rio de Janeiro. Após horas de interrogatório, o regime teria proibido que ele cortasse barba ou cabelo e o obrigado a participar do programa Som Livre Exportação, de Rede Globo – tudo, supostamente, para afetar a normalidade e distrair a população da ausência do pop star e de seus porquês.
O músico gosta de mencionar que, no interrogatório, os agentes da ditadura declinaram para ele uma lista de nomes de colegas que seriam colaboradores da ditadura – informantes, “dedos-duros”, sabe-se lá que designações. Embora eventualmente mencione esse caso, ele jamais deu nomes aos bois em público, para além do manjado Wilson Simonal. É outra de suas elipses, daquelas que nos autorizariam quaisquer indagações, mesmo as mais estapafúrdias. Quem? Simonal? Elis Regina? Chico Buarque? Gilberto Gil? O próprio Caetano Veloso? Quem? Quens?
Caetano sabe, e nós não – e poderíamos dizer que teríamos o direito de saber, nestes tempos de recém-instalada Comissão da Verdade. Mas, sem saber, consumimos seus segredos sem cessar, até 2012, 2222 e além. “Araçá azul é sonho-segredo/ não é segredo/ araçá azul fica sendo o nome mais belo do medo/ com fé em Deus eu não vou morrer tão cedo/ araçá azul é brinquedo”, Caetano diria ao final do álbum subsequente a Transa, Araçá Azul (1973), subtitulado “um disco para entendidos” (com duplo sentido homossexual) e o mais hermético de sua discografia.

Juntos e somados ao “discobjeto” esférico Expresso 2222 (1972), de Gil, o Caetano Veloso de 1971, Transa e Araçá Azul formam um bloco compacto, que veio para fincar o papel definitivo da banda tropicalista da geração heroica dos anos 1960 na música e na cultura do Brasil.

O sonho-segredo afeta a confusão mental, o grilhão político (mas também mental) e o desejo-tabu de falar, falar, falar e falar do mais falastrão de nossos compositores populares. Em tensão, em contraste e em negativo, fotografa ao mesmo tempo o silêncio sepulcral do mais mimado e protegido de nossos artistas, Chico Buarque, o fidalgo antitropicalista por excelência, esquerdista e progressista, mas irmão da atual ministra conservadora da Cultura, cargo que Gilberto Gil ocupou em temporada anterior.

No cotovelo da tropicália, o cisma foi evidente: Gil e Caetano de um lado, mais progressistas em termos comportamentais; Chico de outro, mais conservador, politicamente indefinido. Na volta das respectivas temporadas europeias, em 1972, Caetano e Chico correram a fazer um show (e um disco ao vivo) juntos, como que a negar quaisquer divergências e dissipar quaisquer traumas. A triangulação Caetano-Gil-Chico prosseguiu tempo afora, de modo mais ou menos imperceptível, elíptico – e se Caetano fosse um eterno indeciso entre Chico e Gil, entre branco e preto, casa-grande e senzala, e não o vértice de triângulo que sempre transpareceu ser?

Eis aí por que Transa é o clímax estético de Caetano. Porque flagra-o no ápice da ambivalência, seja por dialética ou por indecisão. As mais loquazes de suas canções são aquelas que fundem versos em inglês e em português, num mosaico vertiginoso de citações cruzadas, díspares, disparatadas – e harmônicas.

Nos seis minutos de “It’s a Long Way”, entrelaçam-se a “old Beatles’ song” “The Long and Winding Road” (1969) e uma série de referências a momentos descontínuos da cultura popular brasileira. Nos versos de “Sodade, meu bem, Sodade”, do paraibano Zé do Norte, fotografam-se o Nordeste seco, o cangaço, Lampião, o cinema da Vera Cruz. Nos de “A Lenda do Abaeté”, do baiano Dorival Caymmi, ressurgem a praia baiana, o mistério moreno, a preguiça litorânea. “Água com areia”, de Jair Amorim e Jacobina, constava de um LP de 1966, de um companheiro de Caetano à época na gravadora Philips, Silvio Aleixo, mulato magro de tipo físico parecido com o dele, mas vozeirão em samba-jazz à moda de Simonal. “Consolação”, por fim, é um afro-samba de Baden Powell e Vinicius de Moraes, lançado em 1963 por Elizeth Cardoso e, no ano seguinte, pela musa bossa-novista Nara Leão.

Fórmula análoga é adotada em “You Don’t Know Me”, cantada em inglês e completada pela voz de Gal Costa em português, numa revisão de versos de “Saudosismo” (1969), homenagem agridoce de Caetano (e Gal) a João Gilberto. Repetido em inglês, o propósito de esfinge “você não me conhece/ aposto que nunca vai conseguir” se intercala com mais revisão da história da MPB dos anos 1960, em especial a bossa transtornada em canção de protesto de “Reza” (de Edu Lobo, 1964) e “Maria Moita” (de Carlos Lyra e Vinicius, gravada por Nara em 1964).
“Nasci lá na Bahia de mucama com feitor/ o meu pai dormia em cama, minha mãe no pisador”, rezam os versos de “Maria Moita” retrabalhados por Caetano. A dualidade inglês/português, Europa/América, Primeiro Mundo/Terceiro Mundo, e assim por diante, encontra paralelo, aqui, na tensão até hoje não resolvida casa grande/senzala. A veia feminista vocalizada por Nara em 1964 fica perdida na omissão de Caetano, que não elege os versos “Deus fez primeiro o homem, a mulher nasceu depois/ por isso que a mulher trabalha sempre pelos dois”, valentes e surpreendentes mesmo para ouvidos de 2012.

Um último e muito significativo trecho acoplado a “You Don’t Know Me” vem de “Hora do Adeus”, baião triste de Onildo Almeida e Luiz Gonzaga, lançado em 1967 pelo segundo: “Eu agradeço ao povo brasileiro/ norte, centro, sul, inteiro/ onde reinou o baião”. De novo, Caetano omite o trecho mais impactante: “Hora do Adeus” é uma canção de despedida, de um sanfoneiro forrozeiro que, em 1967, se acreditava vencido, ultrapassado, aniquilado.

Rezava Gonzagão na triste despedida: “Se eu mereci minha coroa de rei, esta sempre eu honrei/ foi a minha obrigação/ minha sanfona, minha voz, o meu baião/ este meu chapéu de couro e também o meu gibão/ vou juntar tudo, dar de presente ao museu/ é a hora do adeus/ de Luiz, rei do baião”. O rei do baião deve ter cantado tal lamento sentindo-se sobrepujado e desprezado pelos reis do iê-iê-iê, da canção de protesto, da tropicália. Ia ali um bocadinho de exagero, de drama, da alma brasileira perversa que se autovitima à caça de perdão e adesão instantâneos. Gonzagão resistiria, firme e fértil, até 1989.

Descontadas as elipses, é razoável supor que também Caetano ouvisse “Hora do Adeus” em 1969 e se visse ele próprio, e não Gonzagão, como o aniquilado. A citação em Transa é cifrada, mas flagra-o inseguro, incerto ainda da própria sobrevivência artística após o desterro.

Estava mais equivocado que Luiz Gonzaga, e deu o sangue, o suor e os ossos para não permitir que os inimigos, ocultos ou imaginários, o aniquilassem. Fazer-se de vítima – vítima do samba, da canção obtusa de protesto, de Chico Buarque, da ditadura, do exílio, do rock, dos Beatles, dos inimigos ocultos aniquiladores – levantou-se como estratégia macunaímica, de 500 anos e mais e além. Vitoriosa estratégia. “Pra que rimar amor e dor?”, chorava Caetano na arrebatadora faixa “Mora na filosofia”, de Monsueto Menezes, emprestada da irmã Bethânia (que o gravara em 1965). Ao converter o sambão de morro carioca em balada britânica introspectiva, Caetano, o ambíguo, fazia aquilo mesmo que os versos e o intérprete sugeriam não querer fazer: rimava amor e dor.

Como comprova a faixa “Nine Out of Ten” (um reggae produzido antes que nós, brasileiros, tivéssemos tido a oportunidade de ouvir falar sobre Bob Marley), Transa não foi, não é não será o trabalho de um artista aniquilado. O status de obra-prima lhe cabe bem melhor. Por sutileza e ironia, Transa é e diz, também, o que não diz e não é. Obra-prima, sim, mas nunca foi um disco popular, consumido pelas massas que Glauber Rocha dizia almejar, mas nunca alcançou. Transa é, foi, será uma transa cá entre Caetano e nós que costumamos lhe dar ouvidos – mesmo assim impopular, eis-nos aqui discorrendo sobre ele, ontem, hoje, sempre. O encontro-colisão se reproduz toda vez que a confusão mental do artista volta a transar com a nossa. F




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