viernes, 19 de febrero de 2016

1983 - JORNAL NOSSA MÚSICA - Entrevista


1983
Jornal Nossa Música 
Ano II
Número X 

Entrevista SARA AMORIM
Editor: Gustavo de Jesus Werneck
Redatora, Coordenadora e diagramadora: Sara Amorim
Produzido em Belo Horizonte

Caetano Veloso 
en entrevista exclusiva


Jornal Nossa Música: Na entrevista que você fez ao Mick Jagger você perguntou como ele se definiu pelo rock. Então, eu pergunto a você: se naquela época já existia o rock no Brasil, porque você foi pelo caminho da Bossa Nova?.
Caetano Veloso: Todo o pessoal da minha geração, quer dizer, gente que estudou e entrou na Universidade, uma gente mais politizada e que se interessou por música., não enveredou pelo rock. O pessoal que se interessou pelo rock era uma gente mais ignorante. Por isso eu fiz essa pergunta ao Mick Jagger, porque eu suponho que aquilo ali é uma questão de viver num mundo como o dele. Na resposta dele ele disse que não só o Brasil, mas na Europa Continental, na França, na Itália... aconteceu a mesma coisa, as pessoas se interessaram mais por jazz do que por rock'n roll. Mas que na Inglaterra, ninguém sabe porque, as pessoas se interessaram por rock. Eu, na verdade, era esse tipo de garoto do Brasil, universitário. Ao mesmo tempo em que eu gostava de cinema, jazz, eu não ligava pra rock'n roll, porque achava muito vulgar. Depois é que eu saquei, após conhecer o rock'n rol, mas pra isso foi preciso os Beatles e os Rolling Stones.

Jornal Nossa Música: Na época tinha o Raul Seixas, que era rock numa posição meio marginal...
Caetano Veloso: O Raul Seixas e o pessoal do rock... era porque a gente era uma gente mais sofisticada intelectualmente. Eu não conhecia, mas ouvia falar 'Raulzito e Seus Panteras', que era um grupo de rock que tinha em Salvador, e nós éramos um grupo de Bossa Nova. Eu adoro o Raul, o primeiro disco dele eu acho absolutamente genial. Mas tem coisas que eu já não gosto mesmo, por exemplo, o folclore dos anos 50, o folclore estudantil-urbano e americano dos anos 50 em que as pessoas dizem que têm nostalgia e querem imitar e tal... eu tenho horror àquilo. Eu não gosto dos anos 50, não gosto daqueles americanos, daquela época, acho chato. Aqueles meninos machistas, com roupas de couro, moto, cabelos curtos com vaselina, eu não gosto de nada daquilo. E o Raul gostava daquilo, e gosta, ele imitava aquilo. A gente achava aquilo, não o Raulzito, que eu não conhecia, mas idéia, eu achava horrorosa. Por exemplo, eu adoro James Dean, mas o James Dean parecia ser uma imitação grotesca da coisa americana, ele era o inadaptado daquele mundo. Aquele pessoal da Bahia, como aqui no Rio, São Paulo queria imitar a coisa direta, e fica meio grotesco porque os brasileiros são meio fraquinhos, subdesenvolvidos, mal alimentados, então, ficava aqueles... os americanos eram aqueles gatos, fortes com aquelas roupas... E os brasileiros ficavam meio ridículos. Mas não faz mal, porque no fundo eles contribuíram para uma coisa que eu acho muito bacana, que eu acho legal imitar os americanos em muitas coisas.

Jornal Nossa Música: Como assim? Em música, comportamento?
Caetano Veloso: Em tudo, em comportamento, em música, em tudo, eu acho legal. Nessa época eu não tinha coragem, não tinha disponibilidade. E o Raulzito tinha, entendeu? Por isso ele tava na minha frente.

Jornal Nossa Música: Por que seria legal imitar?
Caetano Veloso: Eu acho legal em primeiro lugar porque a gente tem vontade, se tem vontade é melhor imitar do que se reprimir. Em segundo lugar porque os Estados Unidos têm coisas que a gente devia aprender a ter. Então é por isso. Simples assim.

Jornal Nossa Música: Por que você acha que o Brasil está mais aberto à invasão da música estrangeira?
Caetano Veloso: Você veja que os Beatles e os Rolling Stones existiram e são a coisa mais importante, cultural, da última metade do século XX, exatamente por eles terem sido garotos ingleses que quiseram imitar os americanos e imitaram. O que o Raul Seixas queria fazer o Mick Jagger fez, foi tudo naquilo. Agora, ele tinha uma grande vantagem, porque ele é de  um país mãe dos Estados Unidos, e falam a mesma língua. Então ele, John Lennon, Paul McCartney... essa gente imitou os americanos tão ridiculamente quanto o Raul Seixas, ou seja, tão genialmente quanto o Raul. Só que lá, além da grana, eles têm a língua Mas eles abriram as pernas para a cultura de massa americana, por isso que eles criaram uma coisa genial, eles não reprimiram a vontade de imitar. Uma das coisas mais importantes que aconteceu nessa entrevista com o Mick Jagger, e que certamente não deu pra notar pelos espectadores brasileiros, mas que eu vi depois aqui em casa, sem a tradução, a gente nota, que é uma coisa genial que ele fala assim: - apareceu na televisão, mas a gente falando português em cima esconde, - mas ele diz assim: que quando eles eram meninos, que eles queriam imitar a coisa americana, e que os próprios americanos, assim, do nível social deles, não tinham interesse pelo rock'n roll que eles na Inglaterra tinham. Ele quis dizer o seguinte: 'quando a gente veio pros Estados Unidos, os Beatles e nós, a gente é que despertou o interesse da maioria dos americanos para esse tipo de música, que era feita aqui, que era o rock'n roll, que tinha, que fazia sucesso mas que ninguém respeitava.' Mas na hora dele falar isso, ele não diz 'quando nós viemos para os Estados Unidos', ele diz 'quando nós voltamos para os Estados Unidos'. ele era tão alienado, como se diria aqui no Brasil, ele era tão deslumbrado por querer ser americano que ainda hoje, com 40 anos, ele cometeu esse ato falho. Ele errou, é lindo isso, né? De modo que é uma lição. Por isso que eu digo que eu acho mais bonito imitar quando se tem desejo. E os Beatles e os Rolling Stones foram a prova de que isso pode ter o melhor resultado artístico, cultural e humano, político e social possível. Enquanto que no Brasil, isso foi o que nós quisemos dizer durante o Tropicalismo, e ninguém entendeu, quer dizer, o medo de imitar, de soltar esses desejos tem levado a uma coisa preconceituosa, a atitudes imponentes, a uma coisa chata que atrasa tudo."

Jornal Nossa Música: No seu caso, você teve uma fase de imitar alguma coisa ou alguém?
Caetano Veloso: Ah, tive. Tenho. Pelo menos num determinado momento, eu tive a coragem de dizer que eu não temia imitar, que macaquiar alguma coisa não era perigoso pra mim. Às vezes eu imito o Mick Jagger no palco, por momentos, tem momentos que eu faço de propósito. Mas não é isso que eu tô dizendo. É imitar no sentido de você estar fascinado por uma cultura americana, e fingir que não. Fingir que não é, que é muito ruim.

Jornal Nossa Música: Não ter medo de se sentir influenciado?
Caetano Veloso: É! E saber que aquilo ali é forte mesmo, se apropriar daquilo. Não é questão de imitar. Você está vivendo num tempo que se expressa daquela maneira, se apropriar do modo de expressão do tempo pra você se expressar também. É isso. É uma potência. Você se sentir ali, não se sentir à margem de alguma coisa que está passando, e que é grandiosa.

Jornal Nossa Música: Você esteve com Mick Jagger e com Peter Gabriel (ex-Genesis). Como começou isso de querer fazer esses contatos? Foi mais como fã, admirador, como foi?
Caetano Veloso: Não começou nada. Apenas me convidaram pra fazer essa entrevista pra TV Manchete, eles iam entrevistar o Mick Jagger e me pediram pra ajudar a entrevistar. E eu fiz isso de fato. De volta da Inglaterra eu estava mixando meu disco no estúdio da Polygram, quando chegou um rapaz da parte internacional dizendo que Peter Gabriel estava lá em cima, e que fazia questão de me conhecer, se eu permitia que ele entrasse na minha sala de mixagem. E eu disse: Tá legal! Aí ele veio, ficou conversando comigo, ouviu umas faixas... Mas eu não sou fã do Genesis, como sou fã do Mick. Foi ele quem quis falar comigo, quis me conhecer.


Peter Gabriel

Jornal Nossa Música: Dessa conversa com o Mick Jagger o que você tirou de importante pra você?
Caetano Veloso: Ele tem uma visão para além do rock'n roll, uma visão sofisticada. Você viu ele falando na televisão, ele fala do rock'n roll como se o rock'n roll fosse uma coisa de gente ingênua, mas como se ele não fosse ingênuo. Fiquei curioso, porque ele é aquilo. Uma outra coisa muito importante pra mim foi ver o modo de se realizar esse 'star sistem', esse sistema de estrelato no alto nível do show business internacional, com essa gente moderna da minha geração. Então eu vi o jeito como o Mick transa isso, o jeito dele atuar, como é com a assessora dele. Senti essa coisa, e também o modo dele se comportar, porque ele fala com aquele inglês de classe baixa da Inglaterra, ao mesmo tempo ele usa as roupas mais sofisticadas e de uma maneira mais livre, e tem o comportamento mais aristocrático do final do século XX. E toda aquela coisa ambígua do masculino-feminino que ele tem, também, na proximidade, o modo dele falar varia de garoto pra mulher, ele dá umas pinceladas femininas no meio de uma coisa que não é. Isso é bonito também de ver. Gostei do modo dele ficar com as pessoas, ele tem um sorriso lindo, um olhar... é uma pessoa generosa, boa, uma coisa linda, faz muito charme, quer dizer, ele gosta muito de encantar as outras pessoas. Eu vi isso de perto, gostei muito dele. Achei ele um anjo.

Jornal Nossa Música: Você acha que se faz no Brasil rock brasileiro? Na década de 70 o rock esteve um pouco mais calmo, agora parece que está voltando...
Caetano Veloso: O que está acontecendo foi que o rock nos anos 70 ficou meio repetitivo, meio sem graça. Mas não foi só o rock, tudo nos anos 70 ficou meio morno. E agora voltou. Tudo isso aconteceu, posso dizer, são ramos do 'rhytm'blues'. E durante os anos 70 o que dominou mais foi a disco music. E um grande ramo do rock'n roll genial, o mais criativo de todos foi o reggae. E no Brasil só teve um esboço genial disso, que foi feito pelo Jorge Ben, antes, muitos anos antes. Quando pintou a coisa do reggae jamaicano, tanto eu quanto Gil percebemos, todo mundo sabe, que aquilo  era o que a gente sonhava. Tanto que Péricles Cavalcanti e eu quando estávamos em Londres sacamos logo. Em Londres eu já fiz uma homenagem ao reggae em 70.

Jornal Nossa Música: Você dise que parece que está voltando...
Caetano Veloso: Agora tá na moda rock'n roll de novo. No Brasil tá pintando muitos conjuntos, mais do que jamais houve, nunca houve tantos grupos. É gozado, com um atraso de 10 anos tão fazendo grupos no Brasil.

Jornal Nossa Música: Você acha que ainda está se tentando imitar?
Caetano Veloso: Ah, sem dúvida! As pessoas andam vestidas como se estivessem em Nova York. Mas eu gosto Você vê que eu dou a maior força.

Jornal Nossa Música - O movimento punk, por exemplo?
Caetano Veloso: Tudo. O movimento punk, essas coisas new wave daqui do Rio...

Jornal Nossa Música: Por que o Brasil estaria aberto para esse tipo de coisa?
Caetano Veloso: O que eu gosto no Brasil, é que o Brasil consegue se abrir de uma maneira descarada e potente para essas coisas. Isso é que me interessa, porque aberto pra isso o mundo inteiro está, só que os lugares ficam tristes, e o Brasil não fica tão triste.

Jornal Nossa Música: As pessoas estão sempre perguntando porque você está sempre junto das coisas que ainda vão acontecer, ou seja, quando as coisas acontecem você já está bem antes delas... como no caso do Djavan, por exemplo.

Djavan: Fato Consumado (Djavan Caetano Viana)
  2° lugar Festival Abertura 75  (4/2/75)


Caetano Veloso: É. O Djavan foi! Foi mesmo, no primeiro dia que ele foi cantar naquele festival que se chamava Abertura, em 76, 75, terá sido? (Nota: 7/1 a 4/2 de 1975). Quando muito. Aí eu vi o ensaio, subi no palco e falei pra ele: -Olha aqui, você é meu namorado, adorei sua música, adorei você. Fiquei sacaneando. Aí chamei ele pra ir no apartamento do meu quarto no hotel, e ele ficou cantando uma porção de músicas. Logo no primeiro dia que o vi... É verdade esse caso. A coisa melhor que tinha naquele festival era o Melodia, mas o Melodia eu já conhecia, o Djavan foi uma descoberta. Mas às vezes não, eu perco o bonde. Às vezes passa uma coisa superimportante que não sou eu quem nota.





   



Jornal Nossa Música: Em 'Uns' você menciona Djavan outra vez, passa um pouco pela Blitz ('Eu não soube te amar'), ainda faz questão de falar no Tim Maia. Porque faz tantas referências assim?
Caetano Veloso: Eu sempre falo muita coisa, né? Nome de gente... No outro disco botei o nome de 'Cores, Nomes' por causa disso. É um modo de me referir ao meu trabalho, porque eu sempre fiz uma coisa colorida e uso muitos nomes. O Arrigo Barnabé é contra isso, ele já me disse mil vezes: 'Eu não gosto desse negócio de dizer o nome das pessoas nas letras das músicas'. Mas eu gosto, eu gosto de dizer o nome das pessoas. Sempre eu estou fazendo uma música que é um pouco A Festa de Arromba, entendeu? Eu adoro aquela música 'Festa de Arromba', que diz assim: 'Vejam quem chegou de repente, Roberto Carlos com seu novo carrão...' Ia dizendo, aí chegou o Simonal, chegou a Wanderléa... É porque eu tenho muito essa sensação de tá numa festa de arromba, que é a música popular no Brasil. Eu dou a maior força a quem reclama, a quem exige, a quem chia. Mas o meu sentimento é e sempre foi de festa por participar dessa coisa que é a música no Brasil. Verdadeiramente é por isso que eu falo muitos nomes.

Jornal Nossa Música: Com isso você demonstra um gosto seu...
Caetano Veloso: Claro que todo mundo vê que eu dou importância à Blitz... Tim Maia eu homenageio.

Jornal Nossa Música: Você tem uma preocupação de se mostrar atualizado?Caetano Veloso: Vai ver que eu tenho. Mas eu não noto. Eu tenho é uma vontade de expor o meu gosto, né? Pra todo mundo saber do que é que eu gosto. Porque as pessoas aí pensam naquilo que eu falei. Na verdade as pessoas pensam muito naquilo que eu falo, eu tenho consciência disso, então, eu escolho o que falar.

Jornal Nossa Música: Por que você acha que as pessoas pensam muito no que você fala?
Caetano Veloso: Porque eu vejo, eu noto. Me perguntam coisas, ficam curiosas sobre minha opinião, então eu vou logo dizendo.

Jornal Nossa Música: Você se sente, assim como se fosse um olheiro de música brasileira?
Caetano Veloso: Me sinto um pouquinho. Olheiro? Me sinto um pouco responsável. Mas eu acho que cada um de nós é de fato responsável. Cada um de nós que faz música é de fato responsável. E eu tomo o encargo de demonstrar que sei que nós somos responsáveis. Mas de uma maneira bastante irresponsável.

Jornal Nossa Música: Você acha que a crença é necessária?
Caetano Veloso: Não. Eu perdi a religiosidade e fiquei ateu. Mas acontece que eu nunca deixei de ser superticioso, e isso é chato. Sinceramente eu não gosto muito do além, da ideia de outro mundo, não tenho simpatia por essa coisa de sobrenatural. Eu gosto da vida, esta aqui. Agora eu tenho uma coisa que é impossível eu deixar de ter, que é o respeito pelo mistério, porque só há mistério, a gente não sabe nada. Então eu tenho respeito pelo mistério, e tenho vícios mentais de supertição, dos quais não gosto. Então, eu tenho uma relação enviesada com religião. Eu voltei a ter uma relaçaõ propriamente religiosa depois de 68, junto ao Tropicalismo. Eu me lembro que no dia que eu cantei 'É Proibido Proibir', eu gritei uma frase linda, que eu acho linda até hoje, mas me assustou e me angustiou durante muito tempo, gritei no 'TUCA', o pessoal me vaiando e entre outras coisas eu gritei assim: 'Deus está solto!' Aí eu fiquei impressionado com aquilo, achei que era uma coisa estranha e bonita ao mesmo tempo. Mas também eu acho que como eu queria impressionar as pessoas, impor uma força, então eu reconheci o valor, pelo menos psicológico e social, da religião, quer dizer, de uma certa forma organizar ou inorganizar o mistério pra exercer poder sobre as outras pessoas. Isso é uma coisa, que sem dúvida nenhuma, a religião faz e eu vi isso. Mas por outro lado eu passei momentos angustiosos na minha vida por causa disso. Eu tomei uma droga chamada auasca e tive uma verdadeira viagem mística. E era ateu nesse período, então era muito difícil incorporar aquilo à minha mente, direito. Mas hoje, pouco a pouco, foi ficando possível. Mas no período foi horroroso, porque pensei quer estava louco. Aí conversdando com Rogério (Duarte, um amigo meu, artista gráfico, escritor e poeta) eu disse assim pra ele: Rogério, é uma coisa brutal porque eu não acredito em Deus... - E ele falou assim: - 'É, não acredita em Deus, mas eu vi'. Foi isso que aconteceu comigo. Aí eu fiquei com uma sensação da religiosidade complicada, e também fiquei com muita impaciência pra um tipo de materialismo grosseiro que o ambiente universitário de esquerda, no qual a gente vivia, alimentava. Eu acho aquilo primário.: 'Ah, a gente sabe tudo, tudo é isso mesmo, é assim, vamos fazer revolução...' Eu achava tudo isso uma bobagem, então a religiosidade também parecia voltar. E ela voltou também com a liberação sexual. Porque a sexualidade, de uma certa forma, é reprimida de uma maneira muito semelhante à maneira pela qual a religiosidade é reprimida.

Jornal Nossa Música: Você acha que uma influencia a outra?
Caetano Veloso: Eu acho que as duas têm a ver uma com a outra, sem dúvida, mas a repressão que se exerce sobre uma e a repressão que se exerce sobre outra, são de natureza semelhante: reprime-se a sensualidade e a sexualidade assim como se reprime a religiosidade. Eu notei isso também na época do Tropicalismo, e também sobre isso eu quis me manifestar.

Jornal Nossa Música: Quando você estava entrevistando o Mick Jagger você falou 'quando eu voltei', depois você corrigiu: 'quando me deixaram voltar'...
Caetano Veloso: Aquilo é porque eu estava fingindo que tava perguntando, porque eu já tinha perguntado em inglês. E quando eu perguntei em inglês eu disse isso a ele, porque antes da entrevista, nós ficamos conversando, batendo papo e ele me perguntou sobre o meu período em Londres, então eu contei a ele que eu tava exilado, que eu tinha sido preso e exilado, ele perguntou porque e eu contei rapidamente. Ele não entendeu direito, porque é preciso conhecer o Brasil pra saber porque eu fui preso e exilado. Ele já foi preso algumas vezes por causa de drogas, ele pode ter imaginado que podia ter sido por drogas... Na hora eu tava falando com ele, eu falei: quando me deixaram voltar ao Brasil.

Jornal Nossa Música: Você tem alguma amargura dessa época de sua vida?Caetano Veloso: Eu tive muito mais amargura na época, né? Agora não. Agora sou mais feliz. Acho que aquilo não representa muito no Brasil, eu vejo muito daquilo agora. Agora sou mordido de cobra.

Jornal Nossa Música: Você acha que aquilo foi necessário pro seu trabalho ser reconhecido? Porque antes ele era combatido...
Caetano Veloso: É. Eu já critiquei muito certa área da curtição brasileira que elegeu o meu trabalho depois que eu fui exilado, e somente por isso, quiseram me confundir com a esquerda. E como eu reagi contra isso, na volta ao Brasil, todos cairam de pau em cima de mim de novo. Mas hoje eu sou muito feliz, porque essa garotada que tem 16 anos agora, e que me adora direto, de uma maneira que a garotada que tinha 16 anos naquela época me adorava. Eles tinham o mesmo preconceito que eu teria tido contra o Raul Seixas. Como eu fui preso e exilado eles resolveram me anistiar, essa gente de esquerda. Mas aí quiseram me confundir com alguma coisa que eles já eram e que eles acharam que eu também era. E eu disse: Não! Não é nada disso. E eles ficaram putos, quiseram me esculhambar, e até hoje tem esse problema. Mas a garotada gosta de mim hoje, que não sabe de nada disso que estou lhe contando, gosta de mim porque gosta. Não tá perguntando se eu fui preso, nem sabe muito. Eu converso muito com 'tietes' meus, garotos e garotas maravilhosos do Brasil inteiro, que falam assim: 'Cara, li em algum lugar que você foi preso uma vez! É verdade?' - Aí eu conto. As pessoas gostam de mim, e não tão perguntando seu eu sou de direita, de esquerda... gosta, gosta de um jeito que naquela época as pessoas não podiam gostar: espontaneamente, diretamente. Agora é que o que eu faço está chegando naturalmente no Brasil de uma maneira legal. É por isso que eu digo que sou mais feliz."

Jornal Nossa Música: Você ainda se sente combatido?
Caetano Veloso: Eu me vejo combatido, mas não me sinto combatido.

Jornal Nossa Música: Porque e por quem você se vê combatido?
Caetano Veloso: Pelas mesmas áreas que eu me referi. Áreas da imprensa, meios universitários mais...

Jornal Nossa Música: Exigentes?
Caetano Veloso: Não, até um pouquinho menos exigentes. Mas, mais caretas pra essa coisa do que a gente faz. Mas é uma coisa que não tem peso hoje em dia. Hoje em dia, como eu falei na estreia do meu show (Uns), todo mundo fala bem de mim, eu faço sucesso no mercado. Tá ótimo. Eu fiz duas semanas de show aqui no Rio, e o show, você viu ontem, pra mim o show é lindo,mas a imprensa do Rio arrasou, falou mal, eles gostam. Aquilo não me ameaça, não tem peso pra mim...

Jornal Nossa Música: Não tem peso, mas o tempo todo no show você fica falando...
Caetano Veloso: Mas eu falo assim, porque eu tenho um dever pedagógico de esclarecer e também de combater a mentira.

Jornal Nossa Música: Você foi muito combatido pela imprensa aqui do Rio. E no show você falou na imprensa de São Paulo...
Caetano Veloso: Em São Paulo eles falaram bem do show e do disco e aqui eles falaram mal, então eu fiz uma brincadeira, eu agradeci a imprensa de São Paulo pelo realismo.

Jornal Nossa Música: E como você vê a atuação da imprensa no Brasil?
Caetano Veloso: Eu na verdade, eu falo porque eu sou ousado. Eu não leio jornal quase, eu acho chato à beça. Não leio muito jornal, prefiro ler revista do que jornal, mas não leio sempre, tenho preguiça. Eu gosto de ler livro, eu só leio na hora que eu deito. Parar pra ler não, ou eu vou pra praia ou fico conversando com amigos. Eu só leio na hora que eu volto pra casa pra dormir. Aí depois que Dedé dorme eu pego um livro e leio um pouquinho. Então em vez de pegar um livro eu vou pegar a Veja? O Jornal do Brasil então, nem pensar! Às vezes de manhã quando eu acordo, se tiver uns desses jornais aqui em uma mesa... porque eu passei anos sem nem comprar. Porque um jornal é do tamanho de um livro, eu acho, e pra ler um livro eu levo três meses, então como é que eu vou ler um jornal?

Jornal Nossa Música: Em que você se baseia para escolher o ano sim  e o ano não. Dizem que no ano 'não' você acaba trabalhando mais...
Caetano Veloso: É, por acaso acaba ficando assim. Esse ano é o ano não, e eu tô trabalhando à bessa. É porque no ano sim eu tenho trabalho marcado o ano inteiro, e você sabe que tá trabalhando e tá tudo organizado. No ano não você fica meio disponível, então mil coisas aparecem e você fica mais atrapalhado. Mas o que distingue o ano sim do ano não, é que no ano sim eu faço excursão pelo Brasil inteiro, quer dizer, todas as capitais e cidades do interior de São Paulo. E no ano não eu só faço Rio, São Paulo e Salvador. Mas aí no ano 'não' aparece: Israel, Paris, Montreux, Nova York, Roma. Aí aparece milhões de coisinhas, e eu acabo trabalhando pra caralho.

Jornal Nossa Música - Como a sua música é recebida na Europa?
Caetano Veloso: A música brasileira em geral tem um prestígio muito grande nas áreas sofisticadas de todos os países civilizados no mundo, seja no Japão, Itália... Eu tô meio no bolo, graças à eficiência dos meus colegas: Jorge Ben, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Egberto Gismonti, Gal Costa... eu no meio do bolo também posso me apresentar, eles também querem me ouvir. E antes deles Tom Jobim e João Gilberto sobretudo.

Jornal Nossa Música: Da América Latina a brasileira seria a mais bem aceita?
Caetano Veloso: Na minha opinião é a melhor. Tem a cubana, mas a cubana era assim boa, quando Cuba era um prostíbulo, hoje é mais pra quartel do que pra prostíbulo. De todo modo os americanos e a política dos países de direita da América bloqueiam o intercâmbio cultural em Cuba e a gente nem sabe em que pé está a música cubana. Mas o Djavan me disse que está muito bem, pelo que ele ouviu lá. Então fora a música americana a brasileira é a melhor.

Jornal Nossa Música: Você acha que as pessoas ainda se interessam por uma música politizada?
Caetano Veloso: Como politizada?

Jornal Nossa Música: Uma música mais voltada...
Caetano Veloso: Que a letra fale de assuntos sociais? Eu acho que as pessoas se interessam por isso também, e é bom, é natural que as pessoas se interessem.

Jornal Nossa Música: O país está uma bagunça sob o slogan de 'Abertura' e ninguém, hoje, está fazendo música preocupado com isso. As pessoas estão mais preocupadas em ficar alienadas...
Caetano Veloso: Você acha? Preocupado em ficar alienado é muito, hein? Eu não acho. Eu acho que a abertura é mesmo abertura. Acho que é uma conversa fiada querer dizer que não. Eu me lembro do tempo do Médici muito bem. Eu sei o que o Geisel fez foi fundamental, foi profundamente importante. E espero que possa caminhar para uma coisa dignificante para o Brasil, não sei se vai, não sei se o Brasil tem o pique pra fazer uma coisa melhor. Espero que tenha, pelo menos a música popular se esforça há séculos pra fazer desses lugar um lugar digno e bonito. Vamos ver se o país corresponde à música que tem. Não sei o que virá agora, talvez fosse mais legal manter uma coisa militar, caminhando pra uma coisa mais bacana. Mas talvez agora passemos pra uma coisa civil e continuaremos assim muito atrasadamente brasileiros. Eu não sei.

Jornal Nossa Música: O que é 'muito atrasadamente brasileiros'?
Caetano Veloso: Ah, o Brasil é um país atrasado, onde as pessoas morrem de fome. Pô, isso é uma coisa horrorosa, horrorosa. A distribuição de renda é a mais injusta do mundo, nunca resolvem o problema da economia, que é uma coisa que eu não consigo entender, a inflação nunca para..."

Jornal Nossa Música: O que seria a abertura então?
Caetano Veloso: A abertura é uma coisa muito nítida, muito fácil de detectar. A abertura é o seguinte: no governo Médici, quando eu voltei de Londres, havia áreas oficiais, que por exemplo, podiam chamar um artista e exigir: 'Você tem que fazer uma música sobre a Transamazônica, senão...' Ameaçavam, entendeu? Tava mal mesmo. E também a censura podia fazer tudo que quisesse. Você se defender legalmente era impossível. Todos aqueles que tivessem uma posição política diferente daquela que tinha tomado o poder no golpe de 64, e reiterado o poder no segundo golpe de 68 não podiam entrar no país, hoje são governadores de estado. Eu acho tão nítido, eu não entendo porque você faz essa pergunta. É nítido, é límpido. Semana passada o Brizola almoçou com Figueiredo, ou tô louco?

Jornal Nossa Música: Em 19 anos o Brasil continua cada vez pior...
Caetano Veloso: Isso é outra coisa. O Brasil não era bom antes de 64. O mais importante de tudo é isso. O Brasil nunca prestou. 64 não foi um cataclisma, 64 foi um modo do Brasil se expressar.

Jornal Nossa Música: Eu não vivi 64.
Caetano Veloso: Eu me lembro, porque eu sou muito mais velho do que você. Mas não é porque eu me lembro, eu me lembro de antes de 64, sobretudo porque eu sei, eu vejo e leio, e sei o que é o Brasil antes. Houve momentos melhores talvez em alguns períodos, talvez uma maior harmonia, enfim, talvez com D. Pedro II. Eu não sei História direito pra lhe dizer de que foi melhor em algum período. Mas de qualquer forma nunca foi realmente bom. Nunca foi um país democrático, sempre foi exageradamente burocrático, sempre se mexe com papel demais, e tempo demais, nunca houve uma potência construtiva como houve nos Estados Unidos por exemplo. Não houve. Não é agora querer dizer: ' Nós éramos uma beleza, em 64 vieram esses merdas não se sabe de onde...' Mentira (os militares são brasileiros, expressam a nacionalidade), aliás, do exército saíram coisas das mais importantes, inclusive o partido comunista, uma coisa que nasceu no exército brasileiro. Sabe o que é? Tinham uns quatro gatos pingados que faziam universidade, e faziam um pouco de sociologia e teatro em 63, e que apoiavam vagamente os projetos de reforma de João Goulart... Houve uma bossa sofisticada de uma pequena minoria, universitoide de 63, de dizer que a gente ia fazer um país de esquerda. Isso foi uma coisa que cresceu, que tentou se expressar no Brasil. Os militares da direita tomaram o poder e expressaram o que o Brasil realmente desejava como um todo, e mais do que isso, o que o Brasil realmente podia fazer. É isso. Agora querer enganar a juventude, dizer assim: ' não, nós éramos uma maravilha, aí vieram esses militares não se sabe de onde'. Não se sabe de onde não, eles são daqui, eles representam a gente, eles estão lá em nosso nome.

Jornal Nossa Música: Eles estão em nosso nome?
Caetano Veloso: Sem dúvida!

Jornal Nossa Música: Como?
Caetano Veloso: Eles estão representando o que nós somos como etnia, como sociedade e como civilização.

Jornal Nossa Música: Em nosso nome? Eles estão lá porque eles se mantém lá. Não é porque nós queremos que eles estejam lá.
Caetano Veloso: Não estou dizendo você e eu. Eu estou dizendo em nome da história do Brasil. Em nome de tudo aquilo que faz que o Brasil seja Brasil, e portanto, faz com que você seja você, e eu seja eu. É isso. Não estou dizendo que é fatal que devesse ser necessariamente assim, poderia ser diferente.

Jornal Nossa Música: Você falou que as pessoas gostam de ouvir a sua opinião. No show você fala constantemente que se acha bom. Você gosta muito de você? Se acha o máximo?
Caetano Veloso: Eu gosto. Eu falei bem de mim ontem porque eu estava sacaneando o pessoal do jornal que falou mal. Mas às vezes eu falo mal de mim. Às vezes eu me sinto muito... não gosto do jeito que eu sou. Eu me acho inferior ao Jorge Ben, Tim Maia... Eu não me acho o máximo. Eu falei que eu sou do caralho, que eu sou foda. Eu não falei que eu sou o máximo não.

Jornal Nossa Música: Você sempre está falando: 'eu sei que eu sou bom, tá bonito mesmo...'
Caetano Veloso: Mas é preciso tomar as palavras pelo que elas são realmente. Se eu dissesse que eu sou o máximo eu ia ter que responder por elas.

Jornal Nossa Música: Eu perguntei se você se acha o máximo.
Caetano Veloso: É preciso que tenha gente que seja pretenciosa, e eu sou pretencioso.

Jornal Nossa Música: Eu havia lhe perguntado se você se sente um olheiro da música...
Caetano Veloso: Um pouco assim, um pouco professor, um pouco explicador, e um pouco também eu faço a coisa. No 'press release' do meu disco está escrito assim: ' Eu sei que não sei fazer nada realmente bonito como Tom ou Tim', mas sei que sei dar como falar. É isso. Essa é a minha opinião sobre mim.

Jornal Nossa Música: Teve uma época que você disse que não admitia ser caixa de sabão em pó. E nesse disco você disse admtir ser...
Caetano Veloso: Sabonete sim, sabão em pó não, jamé.

Jornal Nossa Música: Depois dessa conversa toda eu fiquei sabendo que você vai fazer uma música pra Simone, é verdade?
Caetano Veloso: Ela sempre me pede, se eu tiver tempo eu faço. Eu já fiz uma vez e ela não gravou.

Jornal Nossa Música - Quer dizer que dessa falação toda não ficou...
Caetano Veloso: Não, não tenho inimizade nenhuma com a Simone, eu me dou muito bem com ela, nos beijamos muito. Eu falei no assunto, perguntei a ela se ela tinha ficado zangada, e se eu podia continuar sendo amigo dela, ela aí me deu um abraço e um beijo....

Jornal Nossa Música: E a música vai sair pra ela?
Caetano Veloso: Se eu tiver tempo eu faço. Quem sabe eu faço uma música chamada 'Sabão em Pó'? "








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